Resenha – As mulheres que amavam os videojogos (2019): Uma Análise (Re-)Construtiva

O conceito de “periferia(s)” é muito complexo, como já disse na apresentação deste blogue. Existem muitos tipos de periferias no mundo, desde pequenas elites marginalizadas até grupos étnicos inteiros reduzidos à qualidade de refugiados atemporais. Neste trabalho, olhamos para uma periferia que começa a ser estudada no mundo dos videojogos, a criada pela discriminação de género, a das “mulheres que ama(va)m os videojogos”, as mulheres que, apesar de serem uma percentagem elevada (percentagens que, por outra parte, mudam segundo o país: nalguns países representam já a maioria dos consumidores) dos gamers, continuam a ser invisivilizadas por um mercado que tradicionalmente tem posto o foco no público masculino. Assim, queria dedicar este espaço para falar do livro As mulheres que amavam os videojogos (2019), onde Antía Seoane e Maite Sanmartín falam da desigualdade de género no mundo dos videojogos e como procurar formas inovadoras para reconstruirmos o género neste âmbito. As autoras conheceram-se no Mestrado de Estudos de Género da Universidade de Santiago de Compostela (USC), mas partindo de especialidades diversas: Seoane estudou Ciências Políticas, Sanmartín licenciou-se em Educação Primária. Esta obra foi um contributo dentro da Coleção Alicerces, criada por Através Editora (editorial galega reintegracionista) para o ensaio de temáticas variadas, sem relação aos temas habitualmente trabalhados por Através: a linguística e a história.

Portada do livro

A obra é muito inovadora na temática, ao falar dos videojogos desde uma análise de género, o qual já é uma perspetiva pouco trabalhada, como também na Galiza apenas há trabalhos sobre os videojogos realizados em galego em geral. Também cabe destacar que esta análise realiza-se numa clave não só destrutiva, como costuma ser o caso, mas construtiva. Não só coloca exemplos negativos da representação das mulheres nos videojogos, desde a popular saga de videojogos Call of Duty (2003-atualidade) até o jogo em linha League of Legends (2009-atualidade), mas também indica casos onde as autoras consideram que estes produtos realizaram um esforço por melhorar, por implementar novas visões. Desde a forma em que Undertale (2014) trata a violência e o género (ou falta de) da personagem que protagoniza o videojogo, passando pela trilogia de Lisa (2012-2015), três videojogos que implementam uma forma criativa, e cruel, de contar uma narrativa, e mesmo o “simulador bélico” This War of Mine (2016), que reconstrói o género bélico ao pôr ao jogador ou jogadora ao mando dum grupo de civis que têm de sobreviver numa cidade em guerra (guerra fictícia, mas muito inspirado nas Guerras Iugoslavas e em particular o assédio da cidade bósnia de Saraievo, sucedido entre 1992 e 1996, com alguns eventos e localizações do jogo tirados diretamente deste conflito). Além destes casos, onde há uma análise em profundidade, também há outra secção onde se referenciam vários exemplos de videojogos indie, com um resumo mais breve e indicando as plataformas onde estão disponíveis e a catalogação PEGI (p.104-111).

Esta análise não se dedica exclusivamente à resenha de produtos, mas também a assinalar locais alternativos dentro da Internet, que as autoras chamam de “Espaços discordantes”, plataformas como FemDevs, TodasGamers, Women in Games eTerebi Magazine, que procuram servir de ponto de reunião e de referência para este coletivo, o das mulheres que jogam videojogos (ou gamers, termo que é utilizado de preferência ao longo da obra). Dentro desta reivindicação de espaços, três das quatro páginas são em língua espanhola, com só WiG em inglês e sem nenhuma presença de outras línguas. Uma crítica que se poderia realizar sobre este ponto seria a ausência de plataformas semelhantes em língua portuguesa, levando em conta a visão de Através de procurar o contacto da Galiza com a lusofonia. Porém, após uma breve pesquisa, não localizei muitos espaços dedicados às mulheres no mundo dos videojogos em português, e todos os exemplos que encontrei foram criados após 2019, data de publicação do livro, pelo que é provável que na altura em que a obra foi escrit estas comunidade estavam demasiado invisibilizadas. Coloco os exemplos que encontrei por se alguém tiver curiosidade: a portuguesa Videojogo, disse Ela (2020-atualidade), que serve de espaço de encontro para tanto jogadoras como desenhadoras de videojogos, e a brasileira Women In Brazil ou WIBR (2022-atualidade), mais focada cara as streamers mulheres e/ou não-binárias. Se a obra for reeditada nalguma altura, incorporar estas referências aumentaria a diversidade linguística e, com ela, a qualidade da obra em geral.

Cabe destacar que as autoras partem duma visão inconformista, que não só incorpora uma reconstrução de género, mas um questionamento a respeito de vários dos tópicos até agora predominantes na indústria. Entre eles, o principal género a ser analisado e posto em questão é o bélico, e em geral a ideia da violência, um comum no mundo dos videojogos até agora. Também mostram, ao longo do texto, uma atitude crítica com a interpretação que a indústria tem realizado do movimento feminista no mercado dos videojogos, onde se compreende que a maneira de atrair às consumidoras mulheres e de mostrar uma imagem “amável” ao mercado e à crítica é a de incorporar em roles tradicionalmente realizados por personagens “homem” a personagens “mulher”: se antes tínhamos um jogo de ação onde o nosso protagonista eliminava sem piedade os seus inimigos enquanto mostrava uma imagem viril e carregada de testosterona, a incorporação da representação “feminina” consiste em que trocamos o nome de tal personagem (se antes era John, agora será Jane) e a sua aparência e deixamos todo tal e como está.

Além disto, este livro procura uma dupla finalidade. Não só tenciona informar sobre espaços contra-hegemónicos no mercado dos videojogos para o público conhecedor, mas também aspira a ser uma guia para aquelas pessoas que não conhecem o âmbito do jogo eletrónico, com recomendações de videojogos que podem ser do interesse do público sem conhecimentos prévios. Isto, sem dúvida, aumenta muito o valor do livro, desenvolvido num contexto cultural marginalizado como é o do reintegracionismo (ou, até, marginalizado dentro duma cultura já marginalizada, como é a galega). A obra fala dum tema, já em geral, pouco tratado nos meios galegos, já que até agora o único meio de comunicação em galego sobre este âmbito das novas tecnologias é a Revista Morcego; e trata este tópico desde uma perspetiva inovadora e em desenvolvimento, e que está carregada duma polémica muito ativa, ao haver uma grande resistência contra a incorporação dos ideais feministas, resistências que, como afirmam as autoras, encontram-se em geral por toda a Internet. Comportamentos que são cada dia mais problemáticos segundo Internet vai virando, cada vez mais, num mundo que atua ao mesmo tempo como espaço de encontro e interação social, meio de comunicação e de transmissão de conhecimento, e cem mil coisas além das mencionadas. Sem dúvida, esta edição foi uma decisão arriscada por parte de Através, mas, na minha opinião, muito acertada.

Logo da Revista Morcego, até agora o principal meio de comunicação em galego sobre o mundo dos videojogos

Quanto à qualidade linguística do texto, as autoras escrevem numa linguagem singela que permite a leitura tanto para um público especializado como também para quem ainda não sabe nada de videojogos e quer introduzir-se neste mercado, ou simplesmente quer ler uma análise sobre a situação deste. Porém, notamos alguns défices que pioram, se bem muito pouco, a compreensão da obra. Em primeiro lugar, a linguagem inclusiva, pela que por norma é utilizada a arroba (@) para marcar quando um sujeito é um conjunto tanto de homens como de mulheres. Este é utilizado ao longo do texto: “integrad@s”, @s inimig@s”, “@s outr@s”, e demais. O problema é que esta semelhou ser uma decisão tomada após a primeira redação do texto, e portanto ficaram várias palavras com o masculino como generalizador, bem parcialmente (“anónimo@s”, pág. 60) ou bem totalmente (“há muito tempo, humanos e monstros conviviam”, pág. 58. É verdade que a palavra “monstro” não tem forma própria para o feminino, mas não sucede o mesmo com a palavra “humano”, logo deveria ser “human@s”, se seguirmos os exemplos anteriores). Nalguns casos, utilizam-se vários elementos de linguagem inclusiva. Por exemplo, fala-se de “as e os enfermeir@s” e “as e os vizinh@s” (pág. 81), com o artigo nos dois géneros no lugar de usar a arroba como mostrava antes. Estas vacilações seriam facilmente corrigíveis em futuras edições, e penso que seria muito positivo, já que fica claro que um dos propósitos principais das autoras é a utilização da linguagem inclusiva, mas neste caso seria melhor implementarem um modelo de forma definida para evitar os possíveis ruídos que possam causar estas alternâncias de vários modelos de linguagem inclusiva (-os/as, -@s, -xs, -es…). Além disto, só encontrei uma frase onde a terminologia, semelha-me, podia ser melhorada um pouco: “Assim, Undertale, apesar de ser um RPG, tem muito de jogo de rol: convida-nos a acreditar que estamos a viver nessa história, a criação humana” (pág. 60). Ora bem, RPG são as siglas em inglês para “Role Playing Game”. Ou seja, “jogo de rol”. A frase, portanto, não tem muito sentido, a menos que se esteja a referir ao “RPG” como género de jogo eletrónico (Fallout, The Elder Scrolls, etc.) e ao “jogo de rol” como jogo de tabuleiro (por exemplo, Dungeons & Dragons), mas mesmo assim não compreendo muito bem qual seria a diferença da que se está a falar nesta frase. Penso que uma melhor redação teria deixado mais claro o significado da frase.

Em conclusão, penso que este livro foi um dos contributos mais enriquecedores para a análise do mundo dos videojogos na Galiza, mais também é uma visão inovadora do funcionamento do mercado e das relações centro/periferia partindo da aplicação de ideologias que, até o de agora, estão ainda a procurar o seu espaço dentro dum mercado, por uma parte variado, como procuro transmitir através deste blogue, mas também com umas tendências centrais (a dos jogos AAA, como definem as autoras) que tendem à repetição constante de motivos anteriores com poucas diferenças além das melhoras tecnológicas em matéria de gráficos e/ou som, levando à perpetuação das ideologias dominantes. É uma obra que procura, portanto, pôr em valor essas periferias, esses espaços alternativos que estão a procurar consolidar públicos insatisfeitos que pedem, neste caso, uma maior igualdade de género. Ainda assim, há um espaço para a melhora, que é preciso indicar não é devido a défices no conhecimento das autoras, pois estas claramente conhecem abundantemente o âmbito que analisam, mas é devido seguramente à falta de referentes anteriores, a não haver uma tradição académica dedicada ao estudo dos videojogos. Portanto, há uma carência de terminologia estável para o mundo dos videojogos em todas as línguas que não sejam o inglês, já que para bem ou para mal as novas tecnologias, e os videojogos formam parte deles, é um âmbito que trabalha e investiga principalmente (por não dizer quase exclusivamente) em inglês. Ao mesmo tempo, notamos que há vontade por utilizar uma linguagem inclusiva, se bem há vacilações à hora de a transmitir.

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