Resenha – Crest (2018): A Arte da Confusão

Introdução

Crest – an indirect god sim (2018) é um videojogo de simulação de Deus desenvolvido por Eat Create Sleep, onde o jogador ou jogadora deverá assumir o rol duma Deidade e guiar aos seus fieis realizando ordens. Porém, estas ordens podem ser interpretadas erroneamente pelos seguidores, realizando tarefas diferentes das que foram designadas e mesmo cometendo atos cruéis como matar ou mesmo comer outros seguidores. Para sobreviver no longo prazo, o jogador ou jogadora precisa ter em conta as diversas mal-interpretações criadas pelos crentes e desenvolver estratégias para evitá-las ou usá-las no seu favor.

Espera, eu não posso ter dito isso… E por que alguém criou esse aviso?

Quem estiver interessado, a seguir falaremos um bocado sobre Crest e, se quiser comprar o videojogo, pôde adquiri-lo na loja em linha de Steam (https://store.steampowered.com/about/?snr=1_5_9__global-header), onde está disponível só em inglês, se bem isto não é um obstáculo já que apenas há texto no videojogo. Só pode haver problemas em memorizar o matiz concreto de cada verbo de ação, mas o videojogo já indica antes de fazer cada ordem o que quer dizer concretamente, pelo que não deveria ser muito difícil de aprender.

Desenvolvedora

Eat Create Sleep (https://eatcreatesleep.net/) é uma desenvolvedora sueca nascida na cidade de Visby. Segundo eles mesmos afirmam na sua página, o seu foco são as “experiências de jogabilidade inovadora com muito coração e temas significativos”. O seu histórico até o de agora mostra que a desenvolvedora especializou-se no género da simulação.

Além de Crest – an indirect god sim, Eat Create Sleep já criou videojogos como Among Ripples (2015), onde o jogador controla o ecosistema dum charco, experimentando o que pode fazer e observando o que passa e Among Ripples Shallow Waters (ainda por finalizar, com data de lançamento em 2023), um jogo de gerência ambiental onde o jogador ou jogadora tem de salvar a uma série de lagos da poluição e permitir que os peixes prosperem.

Jogabilidade

A jogabilidade de Crest é, num início, simples, mas vira mais complexa segundo avançar a partida. Pelo geral, Crest é semelhante a qualquer jogo de simulação de Deus: o jogador ou jogadora é responsabilizado pela supervivência e bem-estar dum número de “fieis” (Followers), e estes seguem as suas ordens. O videojogo funciona baixo um sistema de ciclos, onde cada determinado tempo, o ciclo muda. Além de haver várias estações com efeitos na natureza e animais, os ciclos de tempo também gerem o funcionamento da partida, já que ao final de cada ciclo o jogador receberá um número de Influência segundo o número de cidades “crentes” no mapa.

Um fiel a executar uma ordem. O painel pessoal aberto à direita.

Assim, o jogador tem de gerir as suas necessidades e assegurar a prosperidade dos crentes: comida, nascimentos, segurança, riqueza, entre outras. Cumprir estas necessidades ajuda a que as cidades continuem a existir e que apareçam outras cidades, expandindo o território ocupado pelos humanos. Para fazer isto, é preciso criar “Mandamentos” (Commandments), ordens. Cada ordem está composta de três elementos: um sujeito, um verbo e um objeto. Por exemplo, o sujeito pôde ser a palavra “deserto”, o “verbo” seria “espalhar” e o objeto “bagas”. Isto ficaria na ordem “Pessoas que vivem no deserto, plantem arbustos de bagas”.


Porém, há uma mecânica, ao mesmo tempo simples mas que muda por completo o videojogo: os fieis podem “confundir” a interpretação da ordem do seu Deus, quer dizer, o jogador. Como funciona isto? Duma forma muito singela: com o passar do tempo, o jogo criará uma série de “relações”. Por exemplo, a palavra “baga” pôde ter uma confusão com a palavra “leão”. Nesse caso, a ordem anterior ficaria alterada para “Pessoas que vivem no deserto, deem de comer aos leões”. Obviamente, isto produziria que esta ordem não só faz que os fieis não cultivem as bagas precisas para a sua supervivência, mas também que alimentem aos leões e, com isto, uma diminuição tanto da sua segurança, já que os leões atacam aos humanos, como também que eles, ao ser mais, precisam de matar mais animais para se alimentar, fazendo com que diminua a comida.

Cada associação tem uma breve história a explicá-la. Algumas com mais lógica do que outras…


Portanto, segundo o videojogo progride, os desafios viram difíceis. Por uma parte, ao haver mais cidades, há mais fieis, e estes acrescentam a Influência divina recebida cada ciclo, mas por outra parte ao haver várias cidades em diversas zonas e com necessidades divergentes, o jogador ou jogadora precisa priorizar problemas e ver quais atender antes. Também, segundo há cada vez mais relações que podem gerar confusões, e já que eliminar cada uma destas precisa de 20 pontos de Influência, que é o máximo de pontos acumuláveis, o jogador tem de escolher se acumular os pontos para eliminar estas confusões para que se gerem outras que criem menos problemas, ou utilizá-las no seu benefício. Por exemplo: várias das palavras precisam de ser desbloqueadas através de completar uma série de desafios. Porém, as palavras bloqueadas também podem ser objeto de confusão com outras que sim estão ao acesso do jogador, pelo que é possível, e até recomendável, utilizar as confusões no seu favor e dar ordens sem sentido para que depois estas possam ser mal-interpretadas e, assim, fazer mandatos que doutro jeito seriam impossíveis de fazer.

Listagem completa de todas as associações numa partida. Pode virar muito complexo mesmo.

As cidades desenvolveram ideologias próprias segundo o jogo avança. Por exemplo, uma cidade pôde desenvolver a ideologia “Pacifista”, pelo que os seus habitantes gostarão das ordens que impactem negativamente a necessidade de “Segurança” e não gostarão de aquelas que o impactem positivamente (por exemplo: coletar metal). Se uma cidade não gosta duma ordem, cumprira-a igualmente, mas baixará a sua fidelidade ao Deus. Se gosta, subirá a fidelidade.

Se não estiverem agindo de acordo com ordens, os humanos atuaram de acordo com as necessidades da sua cidade. Por exemplo, se uma cidade tem pouca riqueza, os seus habitantes entrarão em “pânico”, e começaram a procurar ouro ou gemas no entorno imediato para explorar, priorizando esta procura por cima mesmo de outras necessidades mais urgentes ou de mandatos divinos.

À direita, o painel de ideologias duma cidade. À esquerda, o painel de mandamentos indica como a ordem “Pessoas que vivam na selva, migrem para o deserto” virou em “Pessoas que vivam perto de gemas, migrem para onde haja pessoas idosas”

Para se informar das necessidades dos crentes, o jogador tem acesso a uma grande quantidade de informação. Cada humano tem um painel que mostra o que está a fazer e o porque dos seus atos (se agem de acordo com uma ordem divina, se cobrem uma necessidade da cidade ou se estão a atuar por conta própria. Também há um painel para cada cidade a detalhar as suas reservas de recursos e ideologias sobre as diversas necessidades, outro que informa sobre as estações e ciclos temporais, outro com o consumo de água, etc.

De todas as fontes de informação, talvez a mais peculiar seja o “Submundo”. No Submundo teremos ao Ajudante, que nos proporcionará acesso a uma linha de tempo cronológica com os diferentes eventos que foram acontecendo. Também podemos observar lá os mortos, os crentes que foram morrendo ao longo da partida. Eles farão fila à espera do jogador ou jogadora, e quando ele ou ela chegar, contarão os motivos da sua morte e, nalguns casos, darão conselhos para evitar que outras pessoas partilhem o seu fado, passando depois a vagar eternamente pelo espaço.

Linha de tempo com as diversas ações

Gráficos e Som

Nos gráficos, Crest tem um estilo visual muito característico, relacionado com a arte tradicional africana, como visível nos modelos dos personagens e animais. Este estilo artístico foi muito bem recebido pelo público, se bem alguns jogadores acharam engraçado que os modelos dos personagens sejam exageradamente grandes comparados com a paisagem, fazendo com que pessoas semelhem gigantes ao lado das árvores. A interface é fácil de entender, e a única curva de aprendizagem neste respeito é saber onde procurar cada informação.

Quanto ao som, a banda sonora de Crest procura criar uma ambientação tribal. Pelo geral, esta não destaca, mas também não vira repetitiva, sendo um acompanhamento genial para o videojogo e aumentando a imersão.

História

Crest é um simulador que não proporciona muita história de seu, deixando que o jogador a elabora a partir do que aconteça na sua partida. A única história que proporciona o videojogo é, neste sentido, muito comum a outros simuladores de Deus, com um mito fundacional onde a Divindade é criada da nada e faz aos seres humanos para que sigam a sua vontade. Nesta introdução, o jogador ou jogadora já é introduzido a como os fieis vão interpretar as suas ordens ao seu jeito, criando más-interpretações e confundindo os seus mandatos. Mas, até ai chega a história proporcionada por Crest. O resto, é o jogador a fazer.

A única cinemática é no início, mas a partir de ai, somos livres de construir a nossa história. Será uma de paz e progresso, ou de caos e destruição?

O videojogo dá a possibilidade, por exemplo, de pôr nome às cidades e aos humanos e humanas, se bem também é possível deixá-los tal e como os jogo os coloca: as cidades com nomes aleatórios, e os humanos com o nome “Follower + número”. Nomeá-los ajuda a os individualizar e poder seguir as suas ações, mas segundo o jogo se expande e cada vez há mais cidades, pode resultar cansativo continuar a pôr nomes pessoais. Acharia bom que Crest tivesse um nomeador automático que atribui-se nomes pessoais aleatoriamente com a opção de os alterar, ao igual que sucede com as cidades.

Também, um detalhe que proporciona certa imersão no videojogo é que no Submundo, os mortos levam roupas diferentes segundo o jeito em que morreram, pelo que ao vê-los passear na outra vida dá para saber, além da própria estatística na mesma ecrã, é possível saber quais são as causas de morte mais comuns: se mortos por idade avançada, por fome, matados por animais, ou em guerras, e um longo etcétera.

Uma das pessoas mortas a contar como sucedeu a sua morte. Totalmente fora da minha responsabilidade.

Conclusões

Crestan indirect god sim é um videojogo que trabalha sobre um género até o de hoje imensamente popular e, até certo ponto, estancado por falta de novas ideias, mas reconstrói-o a partir duma alteração que, em princípio, semelha muito simples, mas que é crucial ao desenvolver mecânicas e estilos de jogo completamente diferentes.

O videojogo teve uma receção mista (das 238 resenhas em Steam, só 62% são positivas). Para compreendermos o motivo detrás da grande maioria das resenhas negativas, é preciso compreender o seguinte: Crest foi lançado na loja de Steam numa versão muito menos desenvolvida. O videojogo apenas tinha a mecânica da “confusões” dos mandamentos, mas o resto foi acrescentado posteriormente quando os desenvolvedores atenderam a receção negativa do jogo e tentaram solucionar os problemas encontrados pelos jogadores e jogadoras. Nomeadamente, o problema que causava mais ansiedade era a falta de informação: não havia apenas informação nem sobre os fieis, nem sobre as cidades, nem praticamente de nada. O resultado é que, na versão anterior, Crest era um videojogo onde as partidas normalmente duravam apenas uns minutos, com sorte 1 ou 2 horas, já que os habitantes começavam a morrer sem que o jogador soubesse porque morriam ou o que deviam fazer para solucioná-lo. Algumas partidas acabavam antes de que qualquer ordem pudesse ser objeto de confusão. Isto gerou muita frustação por parte do público, que avaliou negativamente Crest. Porém, também é preciso dizer que ao outro jogo disponibilizado da Eat Create Sleep em Steam, Among Ripples (2015), do que já falamos, também tem críticas neutras (1422, 68% delas positivas), apesar de ser um videojogo gratuito.

Crest – an indirect god sim não deixa de ser um videojogo complexo, ainda assim, que, apesar de melhoras, segue a ter críticas pela sua dificuldade, sobretudo quando as confusões começam a se acumular. Um videojogo muito recomendado, tanto para os amantes do género da Simulação de Deus, como também para aqueles que queiram só desfrutar dum bom rato a olhar como as suas ações geram consequências dum jeito fluído e natural.

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